Notorious BIG em Juicy: A quebra da regra
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23/04/2019 15h56
Hoje lembraremos como o gênio de Bed-Stuy no Brooklyn, Christopher Wallace, t.c.c. Biggie Smalls conquistou toda uma nação, trazendo leveza a um hip hop com cara de bravo em 1994, abrindo espaço para que o R&B dos anos 80 fizesse parte da infusão de referências dos cantores, beatmakers e produtores da época. Juicy é um sucesso todos sabemos – mas vamos entender melhor.
A faixa Big Poppa foi hit nas rádios americanas exaustivamente. Warning agradou diretamente ao público gangsta da época, The What teve a participação da estrela Method Man, o remix de One More Chance também estourou em boates e rádios. Mas foi Juicy a primeira música a chamar atenção para um jovem rimador de Nova York louco para mostrar o seu valor.
Produzida por Puff Daddy junto com Poke, do duo Trackmasters, e há também um remix sensacional feito por Pete Rock. Juicy foi o primeiro sucesso de Biggie e foi responsável por alavancar a carreira do MC. Na letra, nada de recados pejorativos para as mulheres ou ameaças de morte para os inimigos – práticas já exaustivas do gangsta rap. Apenas uma autobiografia sincera, desde os tempos em que Biggie era apenas um fã obeso de rap até os dias de glória. Pode-se dizer que Notorious, O Filme que conta a história de B.I.G., poderia ter seu roteiro inspirado só por essa música. Vamos à desconstrução:
Antes de tudo, o álbum foi gravado em duas épocas diferentes. A primeira tinha um Biggie mais duro, e deu à luz as faixas mais hardcore do disco. A segunda, após um momento de recaída no crime, foi responsável pelos hits, entre eles Juicy.
Introdução:
Yeah, este álbum é dedicado para todos os professores que me disseram que eu nunca teria nada, para todas as pessoas que viviam nos prédios onde eu traficava em frente, e que ficavam chamando a polícia, quando eu só estava tentando ganhar um dinheiro para alimentar minhas filhas, e para todos os manos na batalha, entende?
Só a introdução da faixa já mostra o seu teor. Impossível não se sensibilizar com os problemas de infância de Biggie e relacionar isso à sua juventude no crime. Imagine uma criança sendo "desenganada" por seus professores… De qualquer forma, pelo tom usado já daria pra ver que os tempos difíceis ficaram para trás.
Verso I:
Era tudo um sonho
eu costumava ler a revista Word Up
Salt'n'Pepa e Heavy D dentro de uma limusine
pendurando fotos na parede
todo sábado tinha Rap Attack, Mr. Magic, Marley Marl
eu deixava minha fita tocar até não poder mais
fumando uma erva, bebendo Private Stock(licor)
antigamente, quando eu tinha uma jaqueta vermelha e preta
e um chapéu pra combinar
lembra de Rappin' Duke, du-ha, duh-ha
você nunca pensou que o Hip Hop iria tão longe
Aqui está a descrição de um Biggie jovem, entusiasmado com o surgimento do rap, de toda a sonoridade diferente, do estilo diferente etc. É fácil de se identificar com ele, é só nós lembrarmos da primeira vez que ouvimos rap e como aquilo ficou dentro de nós. Na parte técnica, dá para ver as várias rimas multi-silábicas: "I let my tape rock 'til my tape popped / Smokin' weed and bamboo, sippin' on private stock". Além de tudo, a última frase é bastante emblemática e representa como o rap era visto em seus primórdios.
"agora eu estou nos holofotes, porque rimo bem
hora de ganhar dinheiro, explodir como o World Trade
um pecador nato, o oposto de um vencedor
lembro de quando eu costumava comer sardinhas no jantar
paz para Ron G, Brucey B, Kid Capri
Funkmaster Flex, Lovebug Starsky
eu estou explodidno na música como vocês pensaram que eu faria
venha aqui em casa, mesmo número, mesmo bairro
tá tudo bem"
Passada a fase de fã, Biggie conquistou seu espaço no rap. Entretanto, ele não esquece suas raízes, quando lembra dos tempos difíceis em que precisava "comer sardinhas no jantar" ou quando homenageia ícones da old school, como Funkmaster Flex e outros. Além disso, ainda mostra que não esqueceu dos amigos quando os convida para visita-lo no mesmo número e no mesmo bairro de sempre. Esta é uma forma de Biggie mostrar que continue humilde, verdadeiro ou na linguagem hip-hop, ele permanece "keepin' it real". Por fim, há ainda a metáfora com o World Trade. Na época em que a música foi lançada, as Torres Gêmeas já tinham sido alvo de um atentado terrorista – e é a essa explosão que Biggie faz menção. Não deixa de ser curioso reparar que anos depois aconteceria novamente.
Verso 2:
"Eu fiz a transformação de um ladrão comum
para um amigo pessoal de Robin Leach
e tô longe de ser barato, eu fumo uns baseados com meus amigos todo dia
espalhando amor, este é o jeito do Brooklyn
o Moet e o Alize me deixam chato
as mulheres costumavam falar mal de mim
agora elas escrevem cartas porque sentem minha falta
eu nunca pensei que esse negócio de rap poderia acontecer
eu estava muito acostumado em atirar e tal
agora as minas ficam perto de mim, como manteiga e torrada
desde o Mississipi até a costa leste
camisinhas no Queens, ervas por semanas
todos os ingressos vendidos para ver Biggie Smalls
vivendo a vida sem ter medo
colocando várias jóias na minha mina
lanches, lanches, entrevistas para revistas
considerado um tolo porque eu nem terminei o ensino médio
estereótipos de um homem negro incompreendido
mas ainda assim, tudo bem"
Neste segundo verso, Biggie concentra-se em mostrar o que mudou em sua vida depois que ele alcançou o estrelato. Robin Leach, citado na segunda linha, é um apresentador do lendário "Lifestyles of the Rich and Famous", programa de TV no qual ele visitava a casa de famosos para mostrar seus pertences materiais, (algo muito parecido com alguns programas brasileiros). Com esta referência, Biggie resume sua mudança – de um ladrão comum para uma estrela que tem sua casa visitada por Leach. Depois, ele lista as mudanças: mulheres que antes o desprezavam agora querem sair com ele, entrevistas para revistas famosas, shows lotados etc. Ainda assim, ele parece descrente de sua condição, quando diz que não esperava que o rap pudesse levá-lo a tal status. Tal desconfiança é explicada pelas últimas duas frases: ele nem terminara o ensino médio e, como um homem negro estereotipado, era taxado ao fracasso – como disse a professora a quem ele se referiu na introdução da faixa.
Verso 3:
Super Nintendo, Sega Genesis
quando eu tava falido, mano, eu nem podia imaginar isso
tevês de 50 polegadas, sofá de couro
tenho dois carros, uma limusine e um chofer
conta de telefone cerca de 2 mil dólares
não precisa se preocupar, minha conta suporta isso
e toda a minha crew esta relaxando
celebrando todo dia, sem mais morar em casas do governo
pensando no meu muquifo de um quarto
agora minha mãe tem um carrão e um monte de abeiro junto
e ela adora me mostrar, é claro
sorri toda vez que meu rosto está na capa da The Source
O Começo do terceiro verso segue a lista de mudanças na vida de Biggie. O interessante na letra é que ele mostra tudo o que conquistou, mas sem soar como se estivesse se gabando, e sim com a intenção sincera de mostrar como alguém pode subir de vida com o rap. Então ele fala que agora tem videogames, o que antes ele nunca imaginaria ter. Carros, chofer, conta de telefone astronômica enfim, tudo o que ele nunca esperava. Entretanto, ele não deixa de compartilhar isso com seus amigos de batalha, quando diz que estão todos curtindo, sem precisar morar no gueto – o que dá pra pressupor que foi Biggie que os ajudou. Como eu disse acima, ele fala de suas conquistas sem parecer exibicionista porque sempre intercala duas linhas de descrição com outra em que ele volta aos tempos ruins. Por exemplo: "celebrando todo dia, sem mais morar em casas do governo / pensando no meu muquifo de um quarto". Ou seja, em uma frase ele fala que agora está bem, mas logo depois se lembra das dificuldades. É como se os tempos tivessem sido tão ruins que ele levaria essas lembranças para sempre com ele, como forma de não perder a cabeça diante da nova vida. Por fim, uma frase bem marcante, que é quando ele diz que sua mãe sorri quando o vê na capa da The Source. Toda mãe quer ver o filho bem, fazendo sucesso, e aqui ele resume isso com uma simplicidade impressionante. Esta frase também funciona como um gancho para o fim do verso, no qual ele volta de vez aos tempos difíceis:
nós costumávamos discutir quando o proprietário da casa nos humilhava
sem aquecimento, se perguntando por que Papai Noel esqueceu de nós
os aniversários eram os piores dias
agora nós bebemos champagne quando estamos com sede
uh, certo, eu gosto da vida que eu levo
porque eu fui do negativo para o positivo
e tá tudo…
A parte mais marcante é aquela em que ele se lembra da infância: "se perguntando por que Papai Noel se esqueceu de nós". É um retrato claro da pobreza da família na época, quando a mãe não podia dar nem um brinquedo para o filho no Natal. Biggie cria uma imagem forte, uma frase de impacto, que resume bem seus problemas de outrora. Quando ele fala que os aniversários eram os piores dias, também se refere a isso. A essa altura, o ouvinte já entendeu bem o exemplo de Biggie, e fica até feliz por ele ter saído daquela situação usando sua arte, entendendo também a sua época criminosa. Para finalizar tudo, ele diz que saiu "do negativo para o positivo". Uma faixa que de fato vira um hino até hoje em Nova York, por ser um relato de peito aberto, de certa forma niilista e tão necessário para os jovens que começaram a expansão de alcance econômico, que se repetiria pelos próximos anos no mercado da musica. Parabéns, Biggie, parabéns…
Sobre os autores
Fabio Lafa escreve textos, podcaster, pesquisador musical e consultor em music branding.
Nyack é Dj, pesquisador musical e beatmaker.
Juliano BigBoss é estudioso do marcado do rap, pesquisador, produtor artístico e executivo.
Sobre o blog
Papo semanal e bem descontraído sobre os ritmos que movem cidades. Dicas e mapeamento de cenários musicais - clássicos e emergentes, do analógico ao eletrônico.